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Prova ilícita em processos de família: quando a busca da verdade ultrapassa os limites da intimidade
Autora: Tatiana Vasconselos Fortes – Advogada de Famílias e Estrategista Jurídica (OAB/RS 78.321). Pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões. Associada ao IBDFAM e Coordenadora de Marketing e Eventos do Núcleo de Caxias do Sul do IBDFAM/RS.
Resumo
Decisão em uma das Varas de Família e Sucessões de Caxias do Sul reconheceu a ilicitude de vídeos íntimos e dados extraídos de celular juntados em ação de dissolução de união estável. O material foi desentranhado e mantido em sigilo máximo, diante da violação da intimidade e da dignidade das partes e de terceiros. O caso reforça que o Direito das Famílias não pode ser palco de vingança pessoal: a busca da verdade não autoriza o uso de provas ilícitas, sob pena de responsabilização civil e criminal.
1. Introdução
Nos processos de família, a ânsia por provar alegações muitas vezes ultrapassa os limites constitucionais da intimidade. Tem se tornado recorrente a tentativa de utilização de conteúdos de celulares, redes sociais e computadores, obtidos sem consentimento. O fenômeno evidencia não só a busca pela “verdade processual”, mas também o uso do Judiciário como espaço de exposição vexatória.
A Constituição Federal, contudo, é categórica: a dignidade e a intimidade prevalecem sobre qualquer pretensão probatória.
2. A vedação constitucional
O art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal estabelece que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. O Código de Processo Civil, em seu art. 369, admite apenas as provas que sejam legais e moralmente legítimas. Assim, conteúdos íntimos obtidos sem consentimento não apenas não podem ser utilizados no processo, como também configuram grave violação aos direitos da personalidade.
Entendo que essa vedação deve ser observada com ainda mais rigor no âmbito do Direito das Famílias. Isso porque, em meio a litígios passionais, é comum que a parte, movida pela dor ou pelo desejo de provar a “culpa” do outro, recorra a meios ilícitos para produzir provas. O problema é que essa prática, além de inútil do ponto de vista jurídico, pode gerar um efeito contrário: transformar a vítima em ré de um processo criminal e ampliar ainda mais o conflito. O processo de família deve servir para pacificar, proteger e reconstruir, jamais para expor, retaliar ou destruir.
3. O caso concreto
Em recente decisão proferida por uma Vara de Família e Sucessões de Caxias do Sul, o juízo determinou a exclusão de mídias íntimas que haviam sido juntadas aos autos. A medida foi tomada porque:
- o material havia sido obtido de forma ilícita, mediante acesso indevido a dispositivo eletrônico;
- expunha terceiros estranhos ao processo, sem qualquer possibilidade de defesa;
- violava diretamente a dignidade e a intimidade de envolvidos;
- poderia, inclusive, configurar ilícito penal nos termos do art. 218-C do Código Penal.
O Juízo destacou que a gravidade da violação se ampliava porque o conteúdo ultrapassava o conflito familiar em discussão, alcançando pessoas completamente alheias à lide. Ressaltou ainda que a obtenção do material se deu por meios não autorizados, aplicando-se, nesse contexto, a teoria dos frutos da árvore envenenada: provas ilícitas contaminam todas as que delas derivam.
Para resguardar direitos fundamentais e evitar novas violações, o juízo determinou que os arquivos fossem desentranhados e mantidos em sigilo máximo, permitindo acesso restrito apenas à magistratura e à secretaria da Vara. A exclusão não foi definitiva, de modo a preservar eventual responsabilização civil e criminal da parte que promoveu a juntada indevida.
A decisão também afastou o argumento de que a finalidade probatória poderia justificar tamanha invasão de intimidade. Conforme registrado na sentença, o processo não pode ser transformado em palco de exposição ou espetáculo, devendo manter-se fiel à sua função constitucional de solução de conflitos com observância aos direitos fundamentais.
Assim, ao reconhecer que a tentativa de utilizar provas ilícitas em litígios familiares configura abuso processual e desvio de finalidade, a decisão reafirmou o papel do Judiciário como garantidor da dignidade e da intimidade das partes envolvidas.
4. Responsabilidade pela exposição indevida
O uso de conteúdos íntimos sem consentimento vai além do processo e traz sérias consequências jurídicas.
Na esfera civil, pode levar à condenação por danos morais e materiais (arts. 186 e 927 do Código Civil), já que atinge diretamente a dignidade e os direitos da personalidade.
Na esfera penal, pode configurar crimes como a divulgação de cena íntima sem autorização (art. 218-C do Código Penal), a invasão de dispositivo eletrônico (art. 154-A do CP) e, em alguns casos, crimes contra a honra (arts. 138 a 140 do CP).
5. O risco da prova “a qualquer custo”
Normalizar provas ilícitas abriria perigoso precedente de espionagem digital e espetacularização de litígios afetivos. Além de ilícito processual, trata-se de forma de violência psicológica, moral e patrimonial.
Cabe a advocacia orientar seus clientes sobre os limites éticos e legais da prova, reforçando que vencer a qualquer custo pode gerar condenações ainda mais severas.
6. Conclusão
A jurisprudência brasileira tem sido clara e firme: provas ilícitas, sobretudo aquelas que violam a intimidade e expõem terceiros, são inadmissíveis e produzem, por si sós, responsabilidade civil e criminal. Não se trata apenas de um detalhe técnico, mas de um verdadeiro pilar de proteção dos direitos fundamentais.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul possui posição consolidada nesse sentido. No Agravo de Instrumento nº 70062180708, julgado em 16/12/2014, a Corte determinou o desentranhamento de gravação telefônica clandestina em ação de alimentos, reforçando que a prova obtida por meio ilícito afronta o art. 5º, X e LVI, da Constituição Federal, sendo, portanto, inadmissível.
Da mesma forma, no Agravo de Instrumento nº 70057151524, de 17/12/2013, em ação de dissolução de união estável, o TJRS entendeu que gravações realizadas na residência da genitora constituíam prova clandestina, obtida sem autorização judicial e em violação direta à intimidade, destacando que até mesmo alegações de alienação parental devem ser comprovadas por meios lícitos.
Esses julgados demonstram que o Judiciário gaúcho, em sintonia com a Constituição e com o Superior Tribunal de Justiça, não tolera a relativização de direitos fundamentais sob o argumento da busca da “verdade real”.
Nesse sentido, admitir provas ilícitas em processos de família é abrir um precedente perigoso, pois legitima práticas de violência psicológica, moral e até patrimonial dentro do próprio processo judicial. Transformar o litígio em espetáculo de exposição e humilhação mina a credibilidade da Justiça e perpetua dinâmicas abusivas que já deveriam ter ficado restritas ao âmbito privado. O processo judicial não pode se tornar uma arena de vingança, mas sim um espaço de reconstrução e pacificação.
Como advogada de famílias, entendo que devemos ser criteriosos na análise da prova e da forma como foi obtida. Muitas vezes, na ânsia de buscar justiça, a parte acaba cavando para si um processo penal e gerando um problema ainda mais caro e desgastante. Foi o que ocorreu neste caso: uma mulher, sentindo-se traída, quis provar que a culpa era do ex-companheiro, mas, nessa busca cega por acusar, acabou criando um conflito ainda maior para si mesma, desviando o foco do que realmente importava para a solução da disputam e ao juntar a prova a própria ré admitiu que o conteúdo era para público adulto, uma exposição desnecessária
Portanto, no contexto do Direito das Famílias, é imprescindível reafirmar que a dignidade deve permanecer no centro do processo. Proteger a intimidade em meio a litígios passionais é compreender que amar também é planejar, e separar-se também é proteger: proteger a si, aos filhos, ao patrimônio e ao próprio futuro. Essa é a essência da advocacia estratégica, ética e humanizada, não litigar a qualquer custo, mas oferecer às famílias liberdade emocional e patrimonial, e a possibilidade real de um recomeço com segurança e justiça.
Referências
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
- BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
- BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
- BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1940.
- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). AgRg nos EDcl no AREsp 1618394/SP. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe 16 jun. 2021.
- TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento nº 70062180708. Rel. Des. Maria Berenice Dias. 7ª Câmara Cível. Julgado em 16 dez. 2014.
- TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento nº 70057151524. Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. 7ª Câmara Cível. Julgado em 17 dez. 2013.
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